Tropicália serviu de arma contra a homofobia durante a ditadura militar

O movimento do final da década de 60 teve grande impacto na criação de uma identidade LGBTQIA+ e de uma sociedade plural

Por Ana Luiza Messenberg, Bianca Charkani, Guilherme Pitta, Leticia Riby, Maria Laura Mazo e Victória Gorski

“A Tropicália nos deu um pouco de esperança de que isso uma hora iria passar”, diz Beto de Jesus, ativista da causa e presidente da AIDS Healthcare Foundation no Brasil.

A Tropicália é um movimento da música brasileira que surgiu em 1967, durante a Ditadura Militar. Também conquistou outras bolhas artísticas como as artes plásticas, o cinema e a poesia. O seu marco inicial foi o Festival de Música Popular do mesmo ano, realizado pela TV Record. O evento contou com atrações como Gilberto Gil, Caetano Veloso e Os Mutantes, apresentando as músicas “Alegria, alegria” e “Domingo no Parque”.

Gilberto Gil e Os Mutantes (Foto: Reprodução Universo Produção)

Foi nomeada em homenagem a uma obra ambiência de Hélio Oiticica com o título de Tropicália. Posteriormente, Caetano Veloso compunha uma música que receberia o mesmo nome. Pela primeira vez o Brasil deu de cara com músicas ambíguas e a apresentação deixava de ser parâmetro para compreender o que estava por trás das composições — como “Panis Et Circenses”, do grupo Os Mutantes. O período em que o Brasil foi comandado pelos militares foi marcado pela perseguição de minorias e forte censura a tudo que era contrário ao modelo implantado na época. Dentre essas, se encontrava a comunidade LGBTQIA +, que se agarrava às músicas como meio de escape. Considerados uma ameaça à família brasileira, foram alvos de perseguições, expurgo de cargos públicos, tortura e censura.

“Eu acho que a Tropicália foi uma salvação pra nós. Foi um respiro. A violência gerada pela ditadura, ela também nos brutalizou. Se você vive em um ambiente assim, você percebe também que você acaba assimilando e trazendo para si esse comportamento. Eu acho que a arte sempre teve esse papel nos deixar mais dóceis, não no sentido de docilidade, mas no sentido mais afetuoso, de sentir que a voz do outro continua na sua voz”, discorre Beto de Jesus sobre o movimento, em entrevista exclusiva.

Em dezembro de 1968 a prisão de Caetano Veloso e Gilberto Gil, por supostas ofensas à bandeira e ao hino nacional, marca o seu fim. Mesmo que curto, o movimento moldou uma nova geração da música popular brasileira.

A arte como aliada

O movimento da Tropicália plantou a discussão de questões de expressão de gênero e sexualidade na arte brasileira. A subversão dos discursos serviu para a criação de uma identidade LGBTQIA + na cultura nacional. Por meio da subjetividade, questionamentos das barreiras heteronormativas marcavam presença nas obras. Como principal marco da contracultura, suas letras buscavam criticar a construção conservadora.

Inspirados por ícones da androginia, como David Bowie, os artistas da década de 70 buscavam trazer essa expressão de identidade para o Brasil. No auge da Revolução Sexual, performances e vestimentas transpareciam essa ideia de liberdade. Pulseiras, colares, brincos, estampas coloridas e penugens compunham os figurinos de figuras masculinas e femininas.

Poster do filme “Os Doces Bárbaros” de Jom Tob Azulay, 1976. (Foto: Divulgação Creative Commons)

A tanga de Caetano Veloso na capa do Araçá Azul (1973) e a blusa estampada de Gilberto Gil no show Refestança (1978) são exemplos dessa influência. O espetáculo “Doces Bárbaros”, estrelado pelas duas figuras junto à Gal Costa e Maria Bethânia, também gerou grande polêmica. Ao interpretarem a canção “Esotérico”, de Gil, as cantoras simulam um flerte. Ao fim, os quatro harmonizam ao proclamar “o seu amor, ame-o e deixe-o livre para amar” — trocadilho com o slogan do governo militar: “Brasil, ame-o ou deixe-o”.

Ney Matogrosso também é uma das figuras que se destacou nesse período. Com sua voz fina e performance “afeminada”, o vocalista de Secos & Molhados rompia esteriotipos. Junto ao seu grupo, fizeram um barulho enorme com a canção “O Vira”, qual fazia alusão à homossexualidade com os trechos: “Vira, vira, vira homem, vira, vira/Vira, vira, lobisomem”.

Ney Matogrosso em apresentação artística. (Foto: Reprodução Creative Commons)

Obras posteriores ao movimento também traziam temáticas homoafetivas e desafiavam os padrões de gênero. Lançada em 1973, “Bárbara” de Chico Buarque foi censurada pela Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) por fazer menção a relações entre duas mulheres.

“[…]
Vamos ceder enfim à tentação
Das nossas bocas cruas
E mergulhar no poço escuro de nós duas
Vamos viver agonizando uma paixão vadia
Maravilhosa e transbordante
Como uma hemorragia
[…]”

Outras músicas de Chico também abordavam o tema. Em “Geni e o Zepelim” (1979) ele retrata a violencia contra uma mulher transsexual e em “O Mar e a Lua” (1971) canta sobre um amor homoafetivo.

Rita Lee, uma das mulheres símbolo do movimento, lançou em 1997 a música “Obrigado, Não”. Além de contestar a ditadura e a proibição do casamento homoafetivo, o clipe da música inicia-se com um beijo entre dois militares.

“Separe o joio do trigo
O Maquiavel do seu amigo z
Casamento gay além de opção
É controle de população

Foi-se a ditadura militar
Foice e martelo não vão mais vingar
Servir exército só se for da salvação”

Para acessar essas e outras músicas, confira a playlist.

Censura e repressão

No dia 9 de março de 1964 os ministros editaram o AI-1, marcando o início das chamadas “operações limpeza”. Os militares defendiam que sua intenção era “higienizar moralmente” a sociedade. Segundo eles, a população LBGTQIA+ ameaçava os valores tradicionais de família e incentivava crianças a perversidades. Os policiais faziam ronda pelas cidades com o intuito de reprimir homossexuais, travestis, alcoólatras e pessoas consideradas emocionalmente instáveis. Esses atos eram conhecidos como Operação Limpeza, Operação Boneca, Pente-Fino e Arrastão. Assim, surgem as primeiras denúncias de tortura.

Travesti sendo abordada por policiais na época da ditadura. (Foto: Reprodução Arquivo Nacional.)

De 1975 a 1982 a cidade de São Paulo era administrada por Paulo Egydio Martins e Paulo Maluf. As rondas policiais no centro eram destinadas a essas operações, nas quais prendiam e torturavam membros da comunidade LGBTQIA+. O delegado José Wilson Richetti e os policiais comandados por ele promoviam cenas de terror nas regiões centrais da capital paulista.

“O fato de você ser contrário já era inconcebível, agora o fato de você ser contrário e gay era inconcebível duas vezes. Só o fato de ser viado na ditadura era uma resistência. Ser lésbica era uma resistência. Ser travesti era uma resistência.” afirma Beto.

O Código Penal Militar, estabelecido em 1969, possuía um artigo que criminalizava a homossexualidade entre militares. O artigo 235 afirma ser criminoso “praticar ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar”.

Em 1969 foi criada a intitulada “Comissão de Investigação Sumária“. Após o AI-5, o órgão cassou quarenta e quatro funcionários do Ministério das Relações Exteriores, todos acusados de “afrontarem os valores do regime em suas condutas na vida privada” Dentre quinze pedidos de cassação, sete foram justificados como “prática de homossexualismo” e “incontinência pública escandalosa”. Outros dez suspeitos também foram acusados da prática e deveriam passar por exames psiquiátricos e, no caso de comprovação, seriam afastados.

Na mesma época, músicas repletas de representatividade e militância foram vetadas. Também publicações direcionadas ao público LGBTQIA+, filmes e peças de teatro. Com a instauração do AI-5, a repressão contra movimentos sociais se intensivou e impediu a comunidade de reivindicar e protestar acerca de seus direitos.

O povo resiste

A Revolução Sexual, no Brasil, teve seu estopim em 1960 com o surgimento de pílulas anticoncepcionais. Com ela, veio a tentativa da normalização de assuntos que antes eram tabus, como o sexo antes do casamento, relações não monogamicas e a homossexualidade. A partir disso, vivendo em um momento turbulento da ditadura militar, a comunidade não deixou de ir atrás de seus direitos. Lutavam por aquilo que defendiam, organizando manifestações e sofrendo diversos tipos de torturas — muitos chegando à morte.

A luta da diversidade estava ligada à volta da democracia no país, buscando direitos, liberdade e igualdade. Pessoas que participavam do movimento eram perseguidas, mas isso não impedia que se encontrassem e pudessem ter momentos ‘seguros’ para se organizar. Tais encontros, contudo, ocorriam às escondidas.

“Tudo ocorria de forma muito clandestina. Muito do movimento gay estava ligado às lutas pela democracia, então se misturavam as ações que tinham no período.” complementa o ativista.

Grande parte das reuniões ocorriam em suas devidas casas, mas havia também um lugar onde essas pessoas tinham uma liberdade maior: a Boate Medieval, uma das primeiras casas noturnas LGBTQIA+ do estado de São Paulo. A dona, Elisa Mascaro, acolhia e contratava pessoas da comunidade durante o período militar.

A Boate Medieval na década de 1970. (Foto: Divulgação Vânia Toledo)

Localizada na primeira quadra da Rua Augusta, era vista como a casa de muitas pessoas do movimento, fossem elas apenas as que frequentavam ou quem de fato morava lá. A boate era inspirada nos modelos parisienses e no estilo de castelos medievais. Grandes nomes como Chiquinho Scarpa, Elkie Maravilha, Fafá de Belém, Clodovil, Maria Alcina e Dercy Gonçalves marcavam presença. Entre seus grandes eventos, o mais famoso era a Noite da Broadway, que acontecia todo 19 de agosto. A festa era à fantasia e toda a rua ficava interditada, sendo tomada apenas por enormes filas diante as portas da boate. Infelizmente, entrou em decadência e acabou tendo suas portas fechadas em 84.

Capa do Jornal Lampião da Esquina de dezembro de 1979. (Foto: Divulgação Creative Commons)

A comunidade também se sentia acolhida e representada pelo ‘Jornal Lampião da Esquina’. Considerado um jornal homossexual, atuou de 1978 a 1981. Com um total de 38 edições e uma circulação em volta de 10-15 mil cópias, era publicado pela editora também chamada de Lampião.

Seus setores eram diversos: ‘Cartas na Mesa’, ‘Esquinas’ e ‘Reportagens’, sempre panfletando em suas páginas as principais fontes de cultura. O veículo era conhecido por dar vozes às minorias, denunciando a violência do Estado e tratando de pautas de seu mundo.

Outro ponto de encontro seguro eram os grupos que tinham como objetivo iniciar movimentos que defendiam seus ideais. O grupo SOMOS foi fundado em 1978 e dissolvido em 1983, sendo a primeira organização politizada para gays e lésbicas no Brasil. O movimento tinha como objetivo defender os direitos da comunidade. Promovendo a consciência, a busca de identidade, conectava pessoas do grupo com personalidades extremas da época. Existia também o grupo Atobá, que defendia o movimento de emancipação homossexual e denunciava o crescente número de crimes cometidos contra as minorias. Ele é considerado um símbolo de resistência e visto como um exemplo para diversos outros grupos, como por exemplo o pós-ditadura militar Dignidade. Fundado em 1992, lidavam com a dificuldade de conseguir estabilizar-se num país que havia sido militarizado recentemente.

Manifestação do grupo SOMOS contra a violência policial. (Foto: Reprodução Arquivo Nacional.)

Impactos nos dias atuais

Ações como o movimento Tropicália e a Parada Gay possibilitaram a existência em público da comunidade LGBTQIA+. As reuniões já não eram mais secretas, tornando o movimento possível de conhecimento popular, e assim, nasceram novos líderes, aumentando a visibilidade do movimento.

“Quando pensamos no que significou a Tropicália, vem essa perspectiva de liberdade nas letras que vinham cifradas, trazendo esperança. É uma coisa que ninguém pode tirar de nós e que temos que respeitar. Esses artistas foram extremamente corajosos.” comenta Beto de Jesus.

Não só trouxe esperança através da música e da arte para toda população, como o Tropicalismo propôs outras formas de revolução para as comunidades oprimidas. Resistir e existir virou uma forma de lutar a favor dos direitos humanos contra um governo autoritário, era a forma de contornar o sistema intolerante à favor da exposição das etnias, raças, culturas e orientações sexuais. Entretanto, os números de mortes violentas de pessoas LGBTQIA+ aumentaram em 33,3%. Uma educação preconceituosa durante o período da ditadura militar, junto a um governo ausente da defesa dos direitos humanos, são as principais causas para o crescimento das porcentagens.

Dados atuais do IBGE relatam que apenas 1,2% dos brasileiros se consideram gays ou têm atração por alguém do mesmo gênero, 0,7% são bissexuais e 0,1% se identificam com outra orientação. Dos 2,9 milhões de pessoas, somente metade assumiu sua orientação sexual à família. Mesmo com os esforços dos ativistas, a sociedade brasileira regrediu na luta das comunidades oprimidas. Beto acredita que é possível lutar contra a homofobia se a comunidade unir-se a outros movimentos oprimidos na luta; a solução para acabar com o preconceito é consertar o sistema de educação brasileiro.

“Não dá pra pensar em um ativismo sem pensar que ele se relaciona com outras coisas, com a luta de classes. Não dá pra pensar no ativismo gay que não pense no acesso à educação de qualidade. Quando nós falamos do movimento, parece que é apenas sobre a aceitação e o respeito, mas não, nós vivemos em uma sociedade.”

Beto de Jesus.

Nas eleições legislativas de 2022, o Brasil deu um grande passo para uma possível melhora na política. O Congresso Brasileiro terá quatro representantes transexuais nos próximos quatro anos, sendo elas Erika Hilton (PSol-SP) e Duda Salabert (PDT-MG) como deputadas federais e Linda Brasil (PSol-SE) e Dani Balbi (PCdoB-RJ) compondo a bancada de seus estados. A expectativa é que nos próximos anos as políticas a favor da comunidade sejam mais severas e que a população LGBTQIA+ ganhe o direito mínimo que um cidadão deveria ter, o direito de viver.


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